As escolas e estilos de Harmonização

A harmonização poderia ser considerada o casamento perfeito entre comida e vinho. Deve ocorrer de forma que um não se imponha ao outro, ambos sintonizem e se equilibrem, e juntos causem novos e surpreendentes sabores e aromas. Existem três principais escolas de harmonização: a inglesa, a francesa e a italiana, que discordam pouco ou muito dessa assertiva. Vejamos do que se trata:

Escola Inglesa

A escola inglesa de harmonização considera que o casamento entre comida e vinho pode acontecer a qualquer momento assim, como um amor à primeira vista. Segundo essa linha de pensamento, qualquer vinho pode ser acompanhado de qualquer comida.

Não é difícil entender porque a escola inglesa pensa dessa forma. A Inglaterra não é um país famoso por sua gastronomia, mas ingleses sempre amaram vinhos, embora não o produzam de forma significativa. Não houve lá, como na França ou na Itália, a infância do vinho passada com a comida. Eles não cresceram juntos e, depois de adultos, preferem diversão e interação à harmonização perfeita.

Escola Francesa

A escola de harmonização francesa considera muito a harmonização perfeita, uma vez que seus vinhos e sua comida se conhecem há milênios. Mas não há uma “obrigatoriedade” de harmonização. Certamente um chef ou sommelier que siga essa linha de pensamento irá lhe advertir que determinada comida não cai nada bem com aquele vinho. Talvez tente impressioná-lo dizendo o quão horrível é o sabor de torneira enferrujada que ficará na sua boca depois de provar um tinto tânico com um levíssimo peixe. Porém é aceitável fazê-lo do mesmo modo.

Escola Italiana

Na escola italiana o vinho correto para a comida é obrigatório. Para essa linha de pensamento, a harmonização perfeita é uma busca constante, ininterrupta. E quem já provou um prato perfeitamente harmonizado com vinho certamente sabe que o esforço vale a pena.

Classificações

Além das escolas, há também diferentes classificações para a harmonização. Ela pode ser por oposição (doce com salgado, por exemplo), regional (comida e vinho de determinada região), por afinidade (peso, aromas, etc) e demais conjuntos. É importante lembrar que a harmonização não é dogma, mas gosto pessoal acima de qualquer “lei”. Escolha o tipo que mais se adapta a você, ou não escolha nenhum. Só não deixe de beber vinho!

Harmonização Perfeita

Para os encantados com a harmonização perfeita, a prática é fundamental. E nesse caso praticar não é nenhum sacrifício. O objetivo da harmonização perfeita  é criar o tão sonhado conjunto de equilíbrio e sintonia, mas sem tédio! Devem advir daí também novos sabores, aromas e aquela vontade súbita de ajoelhar. A tarefa não é fácil, mas seguir alguns parâmetros pode ajudar bastante.

O primeiro é conhecer muito bem o vinho e a comida que serão harmonizados. Quais são os ingredientes, o modo de preparo, os aromas e sabores além os elementos que atenuam ou acentuam os sabores e sensações um do outro. Vinho e comida semelhantes em corpo (peso, estrutura) estilo (rusticidade, tipicidade, elegância, etc) e sinergia (um melhorando o outro) vão se dar muito bem.

Um excelente exemplo de harmonização perfeita é o torresmo com limão. Quando mordemos o torresmo, que é riquíssimo em gordura, a boca tende a empapar, uma vez que a gordura “entope” as células que produzem saliva. O limão faz exatamente o oposto, causando um incômodo ácido nas papilas gustativas, que faz com que elas liberem muita saliva para diluir o ácido.

Algo parecido (porém com menos intensidade) acontece com peixes e outras carnes brancas e vinho branco. O vinho branco é naturalmente mais ácido que o tinto e os peixes e carnes brancas de forma geral são mais secos, sem muitos sucos naturais. O princípio de harmonização que une carnes brancas com peixes brancos é parecido com o do torresmo com limão: a carne branca vai absorver toda a saliva deixando sua boca seca. Aí entra o vinho branco causando a inundação.

Calhou de a carne e o vinho terem a mesma cor, o que facilita a lembrança, mas incorre no erro da generalização. Muitas vezes um vinho tinto mais leve pode ir muito bem com peixes mais robustos como atum e também outros que podem ser preparados de forma que haja outros sabores em destaque, como molhos diversos, cozidos ou assados de diversas carnes incluindo o peixe.

Os tintos, por outro lado, em geral harmonizam com carnes vermelhas, e há também ótimas explicações para isso. Por serem mais robustos que os brancos, os tintos tendem a se assemelhar em peso às carnes vermelhas. Outra razão são os taninos presentes no vinho tinto.

Tanino é uma substância que existe em praticamente todas as plantas, em seus troncos, folhas, gavinhas, casca e sementes das uvas e partes lenhosas das plantas em geral. Sabemos disso não porque saímos por aí mordendo árvores, mas se o fizermos ficaremos com a boca seca e áspera, lembrando o sabor de caqui ou banana verdes. Essa sensação de aspereza e ressecamento casa perfeitamente bem com os sucos naturais das carnes vermelhas mal passadas. Aqui acontece o oposto às carnes brancas com vinhos brancos: o que inunda a boca é a carne e o vinho vem para secá-la.

Gastronomia contemporânea, Vegetariana, Vegana, Comida Simples do Dia a Dia, Comida Regional – Harmonização é só para a alta gastronomia?

E agora, Baco?

No princípio não havia alta gastronomia. O vinho veio antes até da gastronomia, só não veio antes da comida. No Velho Mundo bebia-se vinho por questão de sobrevivência, em substituição à água contaminada, para alimentar ou para complementar e enriquecer as esparsas refeições. Depois por prazer, para se alegrar, então para degustar e harmonizar. Na medida em que as civilizações se desenvolveram e as pessoas puderam cuidar de outras coisas além de manter a cabeça grudada no pescoço, houve uma evolução gastronômica e a boa mesa por fim teve lugar.

Depois vieram novos alimentos do Novo Mundo e a harmonização começou a bagunçar. “Que vinho harmoniza com mandioca?”- poderia algum fidalgo português ter se perguntado.

Os vinhos do Novo Mundo também causaram certa revolução. A gastronomia contemporânea misturou ingredientes de diversos lugares do mundo, sabores dos mais variados, texturas, formas e apresentações inusitadas. Tudo em um mesmo prato.

“Ovo quadrado azul com sabor de salmão sobre espuma de mel e molho de café”. Quantos vinhos precisamos para harmonizar? – nos perguntamos diante de tanta criatividade. O maior desafio para a harmonização atualmente é a cozinha de vanguarda e suas inúmeras fusões. Caem por terra quase todos os preceitos de harmonização que acabamos de te ensinar a seguir. Sentimos muito.

A cozinha vegetariana é bem menos trabalhosa. Na vegetariana ainda podemos seguir as diretrizes no que se refere a peso, estrutura, sabores e aromas. Talvez nela haja apenas um pequeno desafio: é comum cruzarmos com alhos, azeitonas, anchovas, aspargos e demais ingredientes compondo pratos principais e causadores de pesadelos em quem está a procura da harmonização perfeita.

A cozinha vegana é muito semelhante à vegetariana, com seus desafios e facilidades e o adicional de ter que encontrar um vinho vegano para casar com a comida. Embora os vinhos sejam de origem vegetal, na maioria dos casos, em alguma etapa da vinificação pode haver presença de produtos de origem animal como gelatina, caseína, albumina, hemoglobina, entre outros, embora eles sejam descartados após a clarificação com as impurezas e não integrarem o produto final.

Em relação à comida regional e pratos do dia a dia, nada de pânico. Não abandone a bebida que alimentava os homens primitivos junto a nacos de pão rústico e coelhos assados na fogueira. Comida simples do dia a dia pede vinhos simples, regrinha básica de harmonização.

Difícil mesmo é a cozinha regional, visto que nosso continente é um bebezinho e nossa gastronomia acabou de nascer junto ao nosso vinho. O que harmonizar com pinhão ou quirera, feijão tropeiro, orapronobis, couve, feijoada, tapioca, cuscuz, pirão de leite, açaí, pequi, quiabo, maniçoba, e outros milhares de ingredientes indescritíveis da Amazônia, cada vez mais presentes e explorados pela gastronomia?

Respeitaremos as regras da harmonização perfeita, seguiremos a única regra da harmonização inglesa, tentaremos a francesa? A decisão é de cada incauto, louco, apaixonado ou estudioso de vinho e não seremos nós que decidiremos por você. Mas nos ensine como fez quando conseguir!