A degustação, sem chatice e sem frescuras

Sim, esse texto é para você que tem vontade de se encolher só por pensar em uma degustação de vinhos. Afinal, fala-se de coisas a princípio inimagináveis: aromas diversos, texturas e outras coisas aparentemente perceptíveis apenas para pessoas superdotadas de sentidos. 

Para que possamos entender a degustação, vamos destrinchá-la, observar sua estrutura e sua articulação e só depois que não houver mais segredos passaremos à parte prática. Me acompanha?

Os primórdios da História e do olfato

Falar em degustação de vinhos é também falar em evolução humana. Portanto vamos começar nossa jornada muitos milênios atrás, quando ovos não vinham de supermercados, não existia papel higiênico e o homem andava sobre 4 patas.

Nesse tempo sem linguagem, quando supostamente falávamos apenas “uga-uga!”, sem energia elétrica ou armas de caça, o homem primitivo necessitava do olfato muito mais que de qualquer outro sentido.

Pelo nariz ele percebia a presença do inimigo, da caça, da fêmea no cio. Em uma noite do mais absoluto breu valia mais saber as diferenças sutis entre o cheiro do veado ou do leão. Ter um bom olfato significava a diferença entre a vida e a morte.

Nessa era distante estávamos com o nariz bem mais próximo ao solo onde está uma enorme parte dos cheiros, o que os tornava corriqueiros.

Para que você tenha uma ideia da imensa importância do olfato para o homem primitivo, o centro responsável por sua decodificação – sistema límbico – é uma das partes mais primitivas e protegidas do cérebro. Fica localizado entre as sobrancelhas e bem no meio da cabeça. É muito difícil atingir esse centro e mais difícil ainda danificá-lo.

Acredita-se que a nossa capacidade de sentir e expressar emoções tenha se desenvolvido a partir de células olfativas. Portanto, primeiro aprendemos a cheirar e usar nosso olfato para só então sentir emoções.

Surge a civilização

Então chegamos ao grande momento em que o ser humano conseguiu se equilibrar sobre duas patas. Isso foi excelente para a evolução de modo geral, mas bastante infeliz para a coluna e deplorável para o olfato.

Andando com o nariz afastado do solo, deixamos de sentir diversos cheiros. A evolução, que nos fez capaz de inventar armas de caça, também fez com que a visão se tornasse o sentido mais importante.

Continuamos evoluindo, criamos os primeiros grupos sociais, as primeiras cidades, guerras, religiões, trânsito, filas de banco e tudo o mais que é possível encontrar em uma civilização. E por causa da evolução o olfato continuou mudando.

A descoberta das causas das doenças e a ideia de pecado e devassidão fizeram com que cheiros antes considerados normais fossem vistos de outras maneiras. Fezes, secreções sexuais ou podridão ganharam etiquetas de “nojento”, “pecado”, “cruzes!”.

Por outro lado os aromas considerados agradáveis passaram a ser reproduzidos através de técnicas de extração até chegar à moderna indústria que sintetiza em laboratório desde o perfume da rosa até o aroma de couro do boi marrom chamado Zé.

No mundo moderno temos um gigantesco leque de cheiros agradáveis e desagradáveis, quase sempre artificiais. Entre em um shopping e você saberá do que estou falando. Lojas com aromas próprios que nos fazem relaxar, comprar mais ou nos remetem à fazenda que jamais pisamos.

Nas cidades grandes sentimos cheiro de asfalto, de combustível, de fumaça de carros. Produtos de limpeza cheiram a falso eucalipto; queijos e embutidos suspeitos, a falsos defumados.

Diante de tanta artificialidade acabamos por estranhar a imensa variação de aromas naturais. Um pêssego tem aromas completamente diferentes a depender do seu grau de maturação, da insolação, do tipo e do terroir. Um suco de pêssego industrializado terá sempre o mesmo cheiro.

Os quatro sentidos são usados na degustação

Paladar e olfato

O sabor é a mistura do gosto e dos cheiros dos alimentos. Não comemos pelo nariz, mas comemos com o nariz. Existe um canal de ligação entre a garganta e esse órgão, então toda vez que você mastiga e engole um alimento, está sentindo seus aromas via retronasal.

Lembra daquele mapinha da língua que seu professor te mostrou na quinta série? Você aprendeu que a língua é dividida em “setores” e cada um deles é responsável por sentir um dos 4 sabores: doce, amargo, ácido e salgado.

Então,  agora esqueça disso. Há alguns anos não apenas se descobriu que o mapa da língua não faz sentido – podemos perceber os diferentes sabores por toda a língua – como também pelo menos mais um sabor foi acrescentado à lista antiga. Esse relativamente novo sabor é o umami. Os japoneses já o conhecem faz tempo. É aquele gostinho estranho e indecifrável que o Ajinomoto tem. E convém deixar a lista de sabores em aberto porque acreditam os especialistas que novos sabores poderão ser descobertos.

Em uma degustação de vinhos o papel da boca é secundário. É o sabor que causa o maior prazer e satisfação, obviamente, mas tecnicamente é possível sentir muito menos coisas na boca que no nariz. São cinco sabores que a língua pode detectar versus 1.500 aromas possíveis no vinho e detectáveis pelo nariz.


Tato

Porém o paladar não é só sabor. É também tato. Não existisse tato na boca, todos os beijos seriam sem graça.

Embora não estejamos acostumados à ideia, podemos sentir na boca impressões táteis semelhantes às que sentimos nas mãos. O peso (ou corpo) do vinho, as sensações térmicas causadas pela temperatura do vinho ou seu teor alcóolico (o álcool seca e esquenta a boca), a acidez (que causa salivação) e a picância causada pelos gases dos espumantes são todas sensações percebidas através do tato.

Imagine-se tocando um pedaço de seda, um jeans ou um veludo. Quais são as diferentes sensações sentidas? É possível ter sensações muito semelhantes na boca ao beber um vinho. Não é a toa que as descrições por vezes usam palavras como “sedoso”, “áspero” e “aveludado”.

Experimente pegar diferentes tipos de pesos, colocar nas mãos e sentir o espaço que ocupam. Vinhos encorpados, “gordos” ocupam toda a boca e causam a sensação tátil de preenchimento enquanto vinhos mais “leves” causam menos sensação dessa sensação.

Através de outro sentido, a visão, podemos identificar o tipo de vinho (branco, tinto, rosé, espumante) e ter uma ideia de sua idade e estado de conservação. Bebemos com os olhos antes de mais nada.

Audição

Um ambiente ruidoso pode interferir indiretamente na apreciação do vinho. Os sons podem te desconcentrar logo quando você está prestes a descobrir que raio de aroma é aquele. Um baile funk não é, definitivamente, um bom lugar para se degustar vinho.

E finalmente, a parte prática

Agora que já desvendamos como funcionam os quatro sentidos em uma degustação, vamos à parte prática.

Abra uma garrafa de vinho, preferencialmente tinto, seco, fino e de qualidade. Use uma taça transparente e bojuda, de cristal ou cristal misto.

Não é frescura.

O cristal é mais transparente que o vidro e não distorce a visão do vinho. Além disso ele é mais áspero e ao girar o vinho em uma taça de cristal as moléculas responsáveis pelos aromas “quebram”, liberando os aromas de maneira mais fácil.

O bojo grande ajudará na distribuição do ar pela superfície do vinho e consequente liberação dos seus aromas. E não esquecendo do tato, o contato dos lábios com uma taça de cristal é muito mais agradável que numa taça de vidro.

A ordem empregada em uma degustação de vinhos normalmente é essa: Análise visual, depois análise olfativa e então gustativa.

Eu particularmente, não gosto de empregar a palavra “análise”. Prefiro “observação”. Porque no fundo, no fundo, quem sai analisado é a gente. Também gosto de inverter a observação visual e a colocar em segundo lugar, depois da observação olfativa.

A razão da inversão é simples: a cor e outros aspectos visuais do vinho permanecerão ali até o final, enquanto alguns aromas mais sutis poderão se perder enquanto você observa a cor do vinho.

Também percebi que é mais complicado sentir os aromas do vinho quando se mete o nariz todo dentro da taça. Tente incliná-la até que o vinho chegue bem próximo à borda, então coloque a ponta do seu nariz no lado oposto. Fungue várias e rápidas vezes. Isso pode exigir treino e camisas escuras, mas o resultado costuma ser muito bom.

Se você já está com o vinho em mãos, vamos adiante

Observação olfativa

Antes de mais nada, incline a taça, coloque seu nariz na posição e cheire. Procure esvaziar a mente. Não tente nomear os aromas em um primeiro momento, apenas deixe-se levar. Procure memorizar as impressões sentidas.

É comum que algumas pessoas sintam apenas o cheiro de álcool. Ultrapassar essa barreira as vezes é um pouco complicado, mas não impossível.

Pense nos aromas do vinho como uma massa folheada. São várias as camadas de finíssima massa, uma sobre a outra, juntando-se e formando uma coisa só.

Com os aromas acontece a mesma coisa. O álcool é apenas a primeira folha ou camada. Alguns vinhos possuem poucas camadas, outros, muitas.

Agora tente girar o vinho na taça. Acorde-o! Ele pode estar há anos dormindo na garrafa. Repita o processo de cheirar, fungando. Observe se os aromas modificaram. Aposto que sim.

Lembre-se que o olfato cansa, então não precisa exagerar.

Para treinar seu nariz, use-o no seu dia a dia. Não perca a oportunidade de rasgar folhas de árvores, cheirar temperos, entrar em contato com aromas misturados uns aos outros, como em uma feira. Perceba os aromas que lhe agradam ou desagradam, e porquê. Observe como frequentemente associamos um aroma a uma cena e que cada vez que seu nariz o sentir você será remetido a ela.

Observação visual

Com o vinho na taça, depois de fazer a observação olfativa, perceba a cor. Ele pode ser branco, rosé ou tinto. E em todas as cores há uma grande variedade de tons.

E também pode ser um vinho espumante de qualquer uma dessas cores.

Perceba se ele é límpido, se há partículas suspensas, se é brilhante ou não, transparente ou não. Não julgue o vinho apenas pela aparência. Aliás, não o julgue ainda nem mesmo pelo sabor. Depois de algum treinamento é que você estará preparado para fazer isso.

Observação gustativa

Então leve o vinho à boca, deixe que ele a envolva e pergunte a si mesmo se o vinho a envolve por inteiro, se é “pesado” ou não, ou se não é nem gordo nem magro (corpo).

Engula o vinho e observe a reação da sua boca. Você salivou muito (acidez), não salivou, a boca secou, esquentou (álcool), ficou áspera (taninos)? Se fosse um tecido, qual seria? Jeans, seda, veludo?

Se o vinho é espumante, como foi a “picada” que o gás deu em sua língua? E depois de engolir o vinho, quais aromas e sabores você sentiu via retro nasal (retrogosto)? Eram aromas agradáveis? E quanto tempo esses aromas duraram (persistência)? Qual o sentido da vida, do universo e tudo o mais (se descobrir me conte)?

Parecem muitas perguntas, e são. Se você preferir, anote todas as suas impressões em um caderno. Isso ajuda a memorizar, a guiar e aperfeiçoar seus métodos. Lembre-se que degustação não é ciência, muito menos exata.

Você pode criar sua própria forma de degustar. Fica a seu critério escolher as técnicas que melhor irão se adaptar à sua maneira de degustar. Nem sempre o que funciona para mim vai funcionar para você.

Não leve tão a sério normas, regras e manuais de degustação. Não aceite tudo o que é dito sobre o vinho como verdade.

Dispa-se de preconceitos. Uma degustação perfeita é aquela em que não comparecemos armados de clichês – e eles existem aos milhares. Não tenha pressa. A cada garrafa aberta você adquire mais experiência, mais “litragem”.

Me despeço com uma dica de ouro: mantenha sempre a humildade diante do vinho. Ele com certeza vai surpreendê-lo quando você achar que sabe tudo sobre ele.